2 de julho de 2004

Baianês: A saga continua...

Com a ajuda de Mocks eu fui olhar novamente aquele dicionário de baianês que coloquei o link num tópico anterior. Quem não lembrado início da saga clica aqui.

Pois então. No fim dele tem umas historinhas. Por incrível que pareça eu consegui entender tudo. Uma ou outra palavra a gente tira pelo contexto. Mas e o pessoal de fora da Bahia? Consegue entender?

Aí vão as estórias...

DE COMO VAL DESASNOU

Era dia de sexta-feira de tardinha. E Valdelício Bispo dos Santos, o Val, tava desmilinguido ali na janela de sua casa no Bairro Machado, agoniado, seco pra comer água com a galera, mas enfusado dentro de casa.

É que Floripes, a dona Encrenca, tratava ele na corda curta e às vezes na base do trompaço. A cada vacilo ele caía na taca. E Flor pra ficar virada na porra era daqui prali, a bicha era carne-de-pescoço.

E tava Val nessa consumição quando Flor, que bulia nuns caqueiros no quintal, gritou lá de dentro: "Beinho, dê um salto ali na Feira de São Joaquim e compra uma corda de caranguejo pra eu fazer um escaldado pra você mais eu!".

"Oxente, beinho, só se for agora", respondeu Val. E Flor de lá: "Mas ói sua, hem, não demorar não senão lhe passo a porra, viu?" E val saiu picado, pongou no primeiro humilhante e saltou na Feira de São Joaquim.

Malmente ele chegou encontrou a raça: "Êta zorra, agora fudeu maria-preá", pensou Val." E aí, corrente, qual é a de mesmo?, saudou.

E tome a comer rama, dizer dixote um pro outro e olhar os balaios das meninas feito abelha de padaria. De vez em quando uma passarinha ou um caldo de sururu pra dar sustança. ("Nada de tira-gosto. Tira-gosto pra quê? Eu bebo porque gosto!").

Val ficou logo pronto, mas toda mão dizia que ia se picar. Ai Zé Mario (hum, Zé Mário é graça?) vinha com umas conversas de tomar a saideira, a antepenúltima, a de cortesia, a da dolorosa, a de comemoração, e o tempo passando. Quando Val viu, já era de m anhã. "Ai, meju São Longuinho, é hoje que vou me campar! Aquela bozenga vai me engarguelar, tá rebocado!"

Meio azuado, comprou a corda de caranguejo e foi pra casa. "Hoje eu me lenho, com certeza, sem medo de errar! A sacrista vai me picar a porra", sofria Val.

Mas no que ele despongou do buzu ele desasnou. Ali defronte da oficina estrela de Vadinho Biela, de junto de sua casa, ele desamarrou os caranguejos, arranjou uma varinha e foi guiando os bichinhos até em casa, falando alto pra Flor ouvir; "Caranguejo, d iabo, rumbora, ôxe, é por aqui!". Flor, que já esperava na porta, retada, foi logo dizendo "Seu descarado, filho de mulé dama, se prepare que vou lhe bater fixe! E nem abra a boca, que você calado tá errado!" E Val: "Oxen, beinho, você pensa que é moleza vir de São Joaquim até o Bairro Machado, na paleta, tangendo essa ruma de caranguejo, fazendo o bicho andar pelo passeio, descer meio-fio, atravessar rua, correr de cachorro, e parar em sinaleira? Demora como um corno!"

Ô, retchado!...

NESSA ONTONIEL SE LENHOU

Ói, na moral, cê vai achar que é culhuda, mas certa feita, véspera de São João, tava eu mais Ontoniel, amigo-irmão meu, cumeno água num cacete armado defronte ao Mercado de Itapoã, sentados em dois tamboretes de junto do meio-feito.

Eu tava dando boas gaitadas com a nigrinhagem de Ontoniel, que inticava com um verdureiro, mangando do sujeito na maior descaração porque o tabuleiro das verduras tava todo troncho e armengado, com uns maxixes e uns tomates pecos espalhados por cima dos m ói de coentro.

Por trás de Ontoniel, um vira-lata todo fuleiro tirava uma madorna.

Mas cê sabe que menino adora aprontar. Menino tem arte do cão! Um desassuntado de um galeguinho carregador de feira colocou devagarinho uma bomba de junto do pobre do cachorro e ripou fogo! O vira-lata saiu picado e passou azureta por baixo do tamborete d e Ontoniel, que se desequilibrou e caiu de cabeça no buraco da boca-de-lobo, e ficou ali enganchado com a cara lá dentro.

Resultado: juntou gente como quê e foi o maior enxame pra desatolar o pobre coitado, que desmentiu os dois braços e ficou com caroara nas pernas e dor de espinhela caída. E ainda se retou quando o tal verdureiro fez: "ô, mais tá! Tinha mais é que se estro mpar e lenhar com a boca toda pra não ter mais como espalitar os dentes nem ficar aí se amostrando e xuetando dos outros!"

TENÓRIO DA JEGA E SUA QUENGA

Diz que lá em Cacha-Prego vive uma criatura por nome Tenório da Jega, um pescador tampa-de-binga, que só anda merendado. Tenório é marido de Zefa, um bujãozinho que vive de lavar roupa de ganho, e os dois têm oito bacurins.

Zefa é de paz, mas fica virada no cão quando o marido ganha algum na pesca e gasta tudo em rama. Na Semana Santa do ano passado, que a freguesia foi, não deu outra: Tenório torrou a bufunfa nas fubuias, e ficou na água-dura uma semana sem parar. Zefa, qu e queria comprar uma fazendas pra fazer roupas pro meninos, ficou tão retada que fechou o balaio, dizendo que era por causa da Semana Santa. Só que o tempo foi passando, e nada pra ninguém. Tenório sofria no cinco-contra-um e a madame nada.

Aí, certa feita, Tenório saía do bar de Guega dando rasteira em cobra e chamando cachorro de cacho, quando chegou debaixo da amendoeira ali defronte da pousada de Renatinho e lhe deu vontade de verter água. E lá tava ele no bem-bom, quando uma jeguinha t oda cevadinha encosta perto e ficou ali bispando Tenório, meio arrastando asa por lado dele. Nosso herói, que é meio desmarcado, ficou logo armado pra jega, foi lá e não contou conversa.

E Zefa de balaio fechado e Tenório na intenção da jeguinha todo dia, até que tomou a dita cuja como sua quenga.

Zefa matutava: "De hoje que já abri o balaio e até agora esse desassuntado nada! Aí tem treita! Destá, jacaré, que a lagoa há de secar e eu vou lhe pegar!" E passou a seguir o malfazejo, ficando de botuca por todo lugar que ele passava. E quando deu um a incerta na praça, pegou Tenório jogando um catiopiu com a jega. Aí foi o maior arerê: ela encanou pro padre e pros irmãos dela, que passaram uma descompostura no pobre, que só faltou pedir pra morrer.

E foi muito desenxabido e descambixado que ele viu os irmãos de Zefa entregarem a jeguinha prum primo deles, magarefe lá de Feira de Santana, que ia transformar a pobrezinha em carne de sertão pra japonês.

Daí em diante os amigos, pra chicanar do pobre coitado, passaram a lhe chamar de Tenório da Jega. O qual, de caju em caju, quando tá escornado depois de um falapau, ainda lembra saudoso da bichinha...

HISTÓRIA DE UM BAIANO QUE PERDEU A CHAVE E TEVE QUE TOMAR TENÊNCIA NA VIDA

Certa feita, saí cedinho de casa pra um falapau na casa do meu primo carnal Muriçoca, lá no fim de linha do Pau Miúdo. Tava o maior auê no ponto do ônibus. Gente como a porra, uma renca de menino oferecendo geladinho, um esmolér cheio do pau abusando tod o mundo, vendedor de rolete gritando feito a porra e os garotos vendendo menorzinho no quente-frio colorido. De junto de mim, um cabo-verde todo enfatiotado passava a patapata na cabeça, enquanto defronte, a filha da baiana do acarajé, uma menina cheia de pano branco, mastigava um pão donzelo. Eu já tava ficando retado, porque já fazia uma hora de relógio que a zorra do buzu não passava. Aí a arabaca chegou cheia como quê. Tive que entrar a pulso, mas pra tomar uma eu faço qualquer coisa, e na paleta é qu e eu não ia.

Meio apoquentado, fui me espremendo lá pra frente e consegui passar pela borboleta. Num daqueles freios de arrumação, fiquei de grande fazendo terra numa graxeira bem muderninha, mas enfeitada que jegue na Lavagem do Bonfim. Ela tinha um bodum, que mistu rado com o espanta nigrinha que usava, me causava certo entojo. Mas eu, que faço terra desde o tempo de dom corno, não ia vacilar. "É hoje que eu vou lavar a jega", pensei. E fiquei ali, mal sabendo o esparro em que eu ia cair. É que daí a pouco o motori sta deu outro freio de arrumação e eu me desapartei da tribufuzinha, e me encaixei num negão tipo segurança do Olodum. Aí, tá rebocado, eu pensei que ia bater a caçuleta. O negão virou e fez: "Qual é meu rei? Tá procurando frete comigo, é? eu lhe dei oza dia por acaso"?. Resultado: lei um cachação que doeu como um corno e fui parar lá na casa da porra.

E foi o maior mangue dentro do buzu. Enquanto eu me lenhava, ouvia o povo dizer: "Pique a porra nessa chibungo", "ôxe, tem mais é que estabocar com esse sacana mesmo".

No meio daquela zuada toda, resolvir tirar o corpo, e na primeira sinaleira que o buzu parou eu me piquei. Jurei que mais nunca entro em carro com enxame de gente. Quanto às fubuias, tive que enfonar, mas de hoje a oito possa ser que eu passe lá. Só que na próxima vez vou pedir a um taquiceiro pra me levar, que eu não menino nem oreba e não tô aí pra ximbar de novo.

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